sábado, 5 de dezembro de 2009

005_Enfermaria 204_ E você vai entender?

VOCÊ VAI ENTENDER?

Um dia um residente, talvez o mais novo de todos, estava no setor de enfermagem, e eu perguntei se poderia dar uma olhada no meu prontuário médico. Sua resposta foi direta “você vai ser capaz de entender?”.

Por um momento olhei aquele garoto e perguntei qual a idade dele e veio outra resposta “idade não importa, importa que eu sou um médico formado.”

Dei uma risada e ele me perguntou o motivo. Expliquei que eu tinha 52 anos e estava estudando ininterruptamente a mais tempo do que a existência terrena dele.

Ele não entendeu, ou se fazia de desentendido, e questionou de forma arrogante, com uma nova tentativa de me ridicularizar “se mesmo com esse tempo todo eu não tinha conseguido me formar”.

Como não estava disposto me aborrecer agradeci e parti. Acho que nessa hora ele ficou em dúvida consigo mesmo, caindo em si, me perguntou o que eu desejava, pois não havia entendido o teor de meus questionamentos.

Respondi que ele não deveria se preocupar, pois eu queria apenas saber sobre meus índices bioquímicos, por exemplo, detalhando cada um deles!

Por um momento senti a dúvida em seu olhar. Ele ficou assim por dois dias, observando meu relacionamento com outros médicos. Eu simplesmente poderia ter despejado meu histórico profissional.

Ele representa aquele setor minoritário, onde o diploma tudo pode e representa, esquece que do outro lado podem existir pessoas distintas, com “mais diplomas” do que ele possa imaginar.

Na verdade, entre esse ‘médico’ e outros, prefiro o exemplo dos DOUTORES Raphael Lima ou Alexandre Calixto, Rodrigo Santos, em maiúsculas mesmo, aquelas pessoas que são acima da média mundana simplesmente por serem humanos na função de médicos, não semi-deuses de pés de barro.

005_Enfermaria 204_ Horrores

Horrores
Não achei título melhor!
Como a maioria dos pacientes chega pela emergência, são direcionados ao politrauma, aguardando vaga nas enfermarias, para realizarem exames e continuarem aguardando, agora a vaga para a cirurgia. Assim, pequenos laços de solidariedade já são criados nesta espera.
Percebi que aquele sobe e desce de médicos da ortopedia, que desaparecem sem mais nem menos, é para atender aos inúmeros acidentes graves. Chegam todas as horas ambulâncias, exigindo esforços de diferentes especialistas para “salvar” jovens drogados ou bêbados que bateram de carro ou atropelados por avanço de sinal.
São os mesmo que se dividem entre o ambulatório da emergência onde se encontra a senhora com carinha de avó que foi jogada do ônibus. Aquele mesmo ônibus que arrancou propositalmente e nós nos omitimos.
Pessoas simples, dos tombos nas calçadas irregulares como o meu, enfim uma gama enorme de seres humanos com fraturas de bacia, fêmur, braços e ombros.
Como eu estava apenas com o braço imobilizado, podia andar. Isso era uma dádiva, uma alegria ímpar, não ficar deitado 24 horas, pode mexer-me, nunca valorizei tanto essas possibilidades.
Comecei como “auxiliar de manivela de cama” na base do suspende aqui, abaixa ali. Depois, fui me sentindo mais útil, buscando água, recolhendo bandejas de alimentação, jogando lixo nos coletores, dentre outras pequenas mais dignificantes funções.
Por esse motivo conseguia levar um livro ao amigo de alguém na enfermaria “203” ou trazer algo de um internado na “205”, que incluíam sobras de frutas, sobremesas e, pasmem, cigarros!
Fazendo amizades fui descobrindo uma realidade além das estatísticas e escutei esses casos ou vivi cada um deles em oito dias.
É isso mesmo, coisas assustadoras se descortinavam diante de meus olhos, outra grande lição recebida, pois tomei conhecimento de uma realidade invisível e alarmante na nossa sociedade.
Muitos jovens de 16 a 25 anos estavam internados por acidente de motos, por alta velocidade, dirigirem bêbados ou por conta motoristas que criminosamente jogam os carros contra as motos.
Vi como acidentes de carro ou de moto geram dois grupos de doentes que sofrem muito: os internados e os parentes dos internados.
Descobri pessoas que estão tratando de lesões a quase dois anos, jovens que desperdiçam suas vidas e de seus familiares, muito dos quais trabalhadores informais, como entregadores e mototaxistas, largados irresponsavelmente por seus “empregadores” que saem impune disso tudo!
Acidentes domésticos também estão em grande índices ali representados: chão molhado, tapetes escorregadios, casas cheias de objetos, chinelos mal calçados, meias em pisos deslizantes, dentre outros.

004_Enfermaria 204_ A Internação

A internação
Parte da fratura melhorou outra pequena parte não. Pede as radiografias, pede telefone, parte para reunião com equipe e os superiores.
Vou pra cirurgia.

Compareço no dia e na hora, ia ficar três dias.

Fiquei oito dias!

Nesses oito dias vivi e convivi com pessoas muito diferentes, tanto em sua formação profissional ou cultural. Gente da Rocinha, da Tijuca, da Zona Sul ou de Madureira! Gente que viajou o mundo ou que viajou apenas de uma favela na zona oeste até a Gávea.

Como nada nesse mundo é por acaso, essa convivência me deu uma experiência ímpar, um convívio único, uma oportunidade para rever conceitos sociais, sai com um novo grupo de amigos, forjados na luta do enfrentamento pessoal de seus medos e da reflexão dos diversos fatores que geraram as fraturas.

Com suas estórias e histórias rimos muito, superamos quase tudo. E num dia, de relance, entre gargalhadas disse que iria escrever um livro. A aprovação foi geral, outras situações foram lembradas. Todos contaram seus “causos ortopédicos”.
Como disse no início esse livro é dedicado aos internos da Enfermaria 204 do Setor de Ortopedia do Hospital Municipal Miguel Couto.
Apenas ria...

003_Enfermaria 204_ Atendimento Público

Atendimento público

Meu amigo, médico de hospital público, Dr Raphael, entra no circuito e liga dizendo que o hospital de referência para isso é o Hospital Municipal Miguel Couto.

Para meu desespero imaginei o pior quadro possível. E, de certa forma, era! Luciene e Raphael me pegaram em casa fui para o Miguel Couto.

Fiz a ficha rapidamente. Raphael, cara de novo, tentou entrar comigo, mas o segurança, com a maior autoridade possível barrou, pois “aqui não entra ninguém. Nem sendo médico”. Mostra carteira. O segurança entendeu que ele era realmente médico, que ele trabalhava num outro hospital municipal, mas daí deixá-lo entrar era outra história “por mim não entra mesmo”, sentenciava ele. Com uma paciência franciscana Raphael argumentava, quando já de saco cheio eu peguei o celular. Quando o segurança ouviu a palavra “direção do hospital”, imediatamente mudou e disse “pode passar e, por favor, nem precisa incomodar a direção afinal temos ordem de deixar médicos passar por aqui sem problemas”. Ou seja, era só crise de autoridade, mesmo!

O médico chama, olha a radiografia, manda tirar outra no segundo andar e voltar depois. Esse era o Alexandre Calixto. Fiz a radiografia! Eu era o décimo quarto na fila de espera. Retornei. Além dos que estavam com radiografia, existiam pelo menos mais outro dez na fila. Um menino que teria que amputar a mão em função de “fogos de artifício” que explodiram. Outro com problemas nos ombros e braços necessitando cirurgia! Raphael calado não se apresentara como médico, mas meu acompanhante.

Minha surpresa foi ver aquele jovem médico de 25 anos ou um pouco mais, ali, cansado, mas atento. Era uma espécie de guerra secreta. Uma batalha invisível, silenciosa. Com seus olhos verdes, Dr Calixto fixava sua plena atenção na radiografia. Comparava uma e outra e estava disposto a não se deixar vencer por aquela fratura. Apresentou a radiografia aos outros dois médicos, Thiago e Gustavo, ele orientava os mais novos, discutiam, olhavam e discutiam. Outra radiografia. Puxa aqui, estica ali, grito aqui, grito ali. Sobe ao poli-trauma, conversa com os membros do “staff”.
Sentencia que vai fazer a redução da fratura. Explica detalhadamente o que vai fazer. Juntam os 3 médicos e uma enfermeira, cada um pega numa parte do braço, da mão, do pulso e dos dedos! Puxam e esticam.
Vocês podem não acreditar, mas como sou muito homem, gritei como um machão e o máximo que pude! Foram três tentativas de redução da fratura, três gritos bem altos!
Coloca gesso, nova radiografia, uma conversa muito esclarecedora, todas as dúvidas dirimidas. Volte semana que vem!
Volto pra casa com uma visão muito diferente! Há uma paixão, uma vontade de atender, de um ser humano, que é medico, atendendo outro ser humano que é paciente. Não era cifrão ou estatística. Era serviço púbico de qualidade e humanizado!

Durante todo o tempo em que estive naquele banquinho de espera eu via que aqueles três médicos residentes não paravam.

Apesar de todas as “notícias de jornal e de TV ” era o mesmo atendimento dedicado para bêbados, brigões, crianças, idosos, homens ou mulheres!

Foi assim nas três vezes que eu fui lá!

Minha admiração crescia por esses médicos que estavam trabalhando antes da minha entrada, já cansados, mas continuarão depois que eu partir.

Humanamente é incrível, mas é também humanamente impossível, conviver com aquelas condições de trabalho.

002_ENFERMARIA 204

Atendimento privado

Rápido e caro! O plano de saúde descredenciou a clínica. Bem, podemos dizer que para aumentar os lucros, a clinica “humanizou” o atendimento permitindo atender fulano em nome de sicrano, com o recibo em nome de beltrano.
Como o serviço humanizado aceitava cartão de crédito, lá fui eu ser examinado pelo médico, que pediu dois raios X, novo exame. Tem que operar urgente foi à sentença do médico! Neusa imediatamente já estava disposta a sacar seu cartão, seu cheque, pois como me conhecia sabia da dor e da angústia que eu enfrentava de forma silenciosa e quase heróica.
O serviço humanizado da clínica era explicado pelo médico, tentando me convencer inclusive que eu poderia usar o plano para outro médico, que repassaria para ele, evidente que com uma pequena taxa.
Mas como isso só seria na segunda, com a chegada de minha sobrinha e o namorado, sai engessado e com todas as indicações para fazer a cirurgia, que com desconto, custaria algo em torno de 15 mil, mas se fosse no cartão de crédito parcelava em até seis vezes. Viva o atendimento humanizado!

001_ENFERMARIA 204

O Acidente

Num dia de agosto de 2009, 14h30.
Simplesmente cai!
Obeso, a musculatura da perna enfraquecida não resistiu. Caindo na rua quebrei o pulso.
Começou a minha sina.
Olhei o pulso torto, a pele esticada, o osso quase para fora. Junior me ajudou. Sentei. Fiz uma tentativa de redução de fratura para evitar que a pele se rompesse! Resisti bravamente à dor, quase desmaiando. Respirando com dificuldade! Neusa muito tensa me levou a uma clínica particular em Jacarepaguá. Raphael, médico ia orientando. Serginho, Bárbara e Fabiano chamados apareceram!

ENFERMARIA 204: EXPLICAÇÃO

Explicação

Esse livro não pretende ser crítico ou destrutivo.
Não quero fazer um libelo contra o SUS, contra o Hospital Miguel Couto, sua direção administrativa, nem uma critica pública a gestão do prefeito atual ou de seu secretário.
Aqui estão narrados os casos que cada um de nós, pacientes da ortopedia na enfermaria 204, vivenciou para vencermos nossa dor, nosso medo, nosso momento de angústia ou de solidão, por estarmos ali isolado por alguns dias, semanas ou meses!
Como em qualquer grupo humano, não há unanimidade, há os bons e os razoáveis, os omissos, mas isto aqui não importa.
O mais importante foram às histórias que vivemos e os laços de amizade que desenvolvemos ou com as dores que superamos o tédio que vencemos.
Essa visão carioca do mundo, que ri ou faz piada da sua própria desgraça, que quero tentar expressar aqui, não para lições de moral ou ética. Ali estávamos rindo de nós mesmos. Éramos ao mesmo tempo a piada e aos piadistas.
Portanto, ao ler esse livro, imagine a seguinte cena: dez camas, com dez homens. Três que não levantavam da cama, três com problemas na mão e quatro com problemas na perna. Um com problema na perna saiu, entrou outro com problema no pé! Saíram outros dois com problemas no braços e entram um com problemas no ombro e outro com problema no pé.

ENFERMARIA 204

ENFERMARIA 204
UM RELATO HUMORADO DA EXPERIÊNCIA DE INTERNAÇÃO NO HOSPITAL MIGUEL COUTO






Franklin de Mattos


2009




Agradecimentos

- Dr. Raphael Lima, Neusa Kitajima, Antônio Pina Junior, Sergio May, Luciene Pereira, Eva Maria, irmãos e irmãs de ideal místico presentes na primeira hora.

- Bárbara e Fabiano, por estarem lá

- Alexandre Calixto, Thiago Neiva, Gustavo Lima os jovens médicos que me fizeram acreditar na humanidade do atendimento médico.

Dr. Rodrigo dos Santos... que simplesmente refez minha mão...isso é a mágica do conhecimento!