Como ele só fazia suas necessidades no banheiro do segundo andar da sua casa, ali, na enfermaria 204, seria impossível e atendendo uma sugestão de sua mãezinha, com muito esforço, fez suas necessidades de pé.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
016_Enfermaria 204_ A Mãe Possessiva
Como ele só fazia suas necessidades no banheiro do segundo andar da sua casa, ali, na enfermaria 204, seria impossível e atendendo uma sugestão de sua mãezinha, com muito esforço, fez suas necessidades de pé.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
015_Enfermaria 204_Em nome de Jesus
O atleta deu um salto da cama, olhos arregalados, apavorado:
- Porra, estou numa cama de um cara que morreu ontem?
- Não, ele morreu hoje de manhã, disse Assis!
A cara de "sou fodão" do atleta começou a mudar. Cada um de nós contava das dores, e aqueles que estavam se recuperavam das dores do trauma pós-operatório exageravam na narrativa.
Não me lembro quem foi lá, olhou a perna enfaixada e com cara de entendido, para apavorar ainda mais disse:
Seu primeiro ato foi descer e roubar uma roupa de acompanhante de idosos e outra de crianças.
Com ele se equilibrando em uma perna e em uma das bengalas e apontando a outra para ela, aos berros recitava versículos bíblicos.
No meio dessa cena hilária eu me lembrava John Charles Carter, mais conhecido como Charlton Heston, como Moisés e seu cajado mágico, enfrentando o Faraó.
Mas a mãe do atleta foi sutil como hipopótamo baleado dançando balé clássico em pista de patins no gelo:
E, para comprovar suas teorias, ficava gritando histericamente de todas as formas, fingindo desespero, para o filho ser operado, inventava situações para médicos e enfermeiros.
E como Deus escreve certo em linhas tortas:
E beijava de forma muito reverente a mão da babalaorixá. E em nome de Jesus ela saudava todos os Orixás e guias da ex-mãe de santo. E explicava solenemente:
014_Enfermaria 204 _Mexe com o pé, porra!
013_Enfermaria 204 _ Mamãe me tira daqui
012_Enfermaria 204_ Pode desabafar
011_Enfermaria 204_ O Medo
Ao lado do senhor W, estava o Sr. X nordestino.
Eu nunca o vi recebendo visitas. Isso me compadecia. Sua defesa era dormir nos horários de visita. Seus exames de risco cirúrgico não indicavam as condições adequadas para sua cirurgia na perna.
De novo o famoso fêmur, partido quase no meio. Fazia exatamente o contrário do Sr. W, procurando ficar imóvel, com medo do escuro, pedia para deixarmos a luz acessa, sem expressar-se corretamente, rabugento em alguns momentos, ficava lá fazendo palavras cruzadas.
Tomava seu banho sozinho, indo também ao banheiro.
Na hora de se mexer, de se exercitar era só grito, mesmo com Dr Thiago dizendo “paciente meu não sai daqui aleijado não, vamos lá, preciso que você coopere” era uma tentativa correta e cinco erradas.
010_Enfermaria 204 - O Estímulo
O Sr. W, estava com 77 anos, cego de uma das vistas. Fratura no colo no fêmur. Vascaíno doente. Ficava na cama a minha frente.
Todos os dias fazia suas flexões na barra suspensa. Eram pequenas séries de 3 exercícios. Deitado levantava os braços, pegava na barra, 3 séries. Descansava e mais outras 3 séries.
Se submetia a rotina diária sem esboçar nenhuma contrariedade.
Ouvia o radio de pilhas, pedia aos parentes para ler o jornal, torcia nos jogos do Vasco e da Seleção, que assistimos no Hospital.
Assim, ao longo do dia realizava cinco ou seis séries. Rápido repouso. Agora era o alongamento dos braços um de cada vez. Exercitava a perna boa, logo depois dos braços.
Com coragem obedeceu ao médico, logo que voltou da cirurgia. Dobrou joelhos, deu uma série gritos leves, contidos. Suou frio. Vomitou. Respirou fundo!
Neste momento alguém fez a pergunta idiota de prache:
- Está doendo?
Com a maior naturalidade ele respondeu:
- Porra, pra caralho.
Risada geral e ele imediatamente se desculpou de todos!
Nunca se deixou abater e fez tudo de novo! Se ele superou tudo, pensávamos em silêncio, todos nós, por dever de honra, deveríamos também vencer.
009_Enfermaria 204_ Os Profissionais de Enfermagem
008_Enfermaria 204_ Roupa Cidadã
Bebeu um pouquinho e foi atropelado.
Chegou na ambulância do Bombeiros.
Dois das no "politrauma" e baixou a enfermaria.
A aparência era das piores, ofereceram um sabonete, indicaram o banheiro.
Foram 2 horas de banho.
A zelosa e exemplar enfermeira da manhã (tem um capítulo sobre ela depois desse) arranjou um roupão do hospital.
Que alegria.
Vestiu a roupa, deitou-se na cama, com as dificuldades das imobilizações e disse algo que me tocou profundamente;
- Nunca fui tão bem tratado na vida. Fizeram curativo, me chamaram de senhor, me deram essa cama aqui com vocês, me deram essa roupa, tem mais de 20 anos que não tenho uma roupa limpa.
Olhou pra mim e disse
- só falta a barba.
Pronto, dei meu aparelho de barba e as lâminas.
Imediatamente levantou e fez a barba e outro banho.
Conversamos enquanto esperávamos o lanche da tarde.
Ele foi casado, a mulher arranjou outro, começou a beber, drogas, perdeu o emprego, perdeu tudo, foi para a rua, está assim a 20 anos.
Chega o lanche, come, recolhe o que os outros não comeram. Come tudo.
Agradece a cada um de nós, como se fôssemos os responsáveis por sua alimentação.
- Essa roupa me faz um cidadão.
Contou dos espancamentos que sofre, dos assaltos, da crueldade, da briga por comida, das pessoas que ajudam, das que "jogam água quente" ou "que botam comida estragada".
- Minha preocupação é como vou voltar para a rua e manter a ferida limpa.
Eu e outros ficamos impressionados como ele se sentia importante, como ele se sentia em um paraíso.
- Puxa estou comendo a mesma comida que o professor (eu) e o engenheiro (Assis).
No quarto fez a cirurgia e saiu, desesperado, pedindo para ficar ali.
Mas o pijama ele levou como brinde e recordação dos momentos de cidadão.
007_Enfermaria 204_ Enfermeira de Auschwitz-Birkenau
- Boa noite! Olha estou com duas enfermarias não vai dar pra cuidar de todos, portanto se puderem não me incomodar eu agradeço, estou muito cansada.
Deu-me uma vontade louca de perguntar o que ela fazia ali, por que chegara tão irada, revoltada, dizendo de antemão que não quer ter trabalho, com aquilo que ela deve exercer e receber por isso!
Observei sua técnica de trabalho, com os doentes imóveis, o que evidenciava uma dose sutil de bondade digna de uma dedicada funcionária de Auschwitz-Birkenau:
- Trocar fraldas agora de noite? Por que não faz suas necessidades de manhã ou não pediu ao pessoal da tarde pra limpar? Vai ficar aí fedendo e sujo, não ganho pra isso!
No plantão seguinte a resposta viria com mais ódio:
- Gente, enfermaria de noite só tem duas coisas: doente reclamando e e doente com problemas e eu já tenho os meus! Me deixem em paz!
- Vou dar o remédio agora, pois vou dormir e nem volto aqui mais.
Bom, felizmente era só uma ...
006_Enfermaria 204_O FILHO COM PROBLEMA
Segundo a mãe e o pai ele "conseguiu" uma moto importada com um amigo estava brincando de "pega" quando a polícia chegou, eles fugiram, pois os policiais podiam
não entender a brincadeira e, não riam, tinha um agravante, ele "esqueceu de pegar os documentos com o amigo, pois saiu correndo com a moto, cheio de alegria para mostra na comunidade".
Quebrou clavícula, costelas, omoplata, de um lado e o punho e dois dedos do outros.
Imaginem um cara com ombro imobilizado com a mão na frente à altura do coração e a outra mão com engessamento até o cotovelo.
Veio acompanhado do pai e da mãe que não se toleram, são separados, mas moram juntos, com outros casamentos e filhos distintos. Simples de entender, espero ter explicado bem.
Dormia de dia. Tomava o café e dormia até o almoço. Depois dormia até o lanche, do lanche até o jantar! Aí acordava e zanzava a noite pelo hospital.
Reclamava do pai em tudo, qualquer vontade não satisfeita ligava e se queixava pra mãe, que chegava e brigava com o pai, na frente de todos, tipo barraco geral na enfermaria.
Retirou por três vezes as imobilizações, pois sentia calor. Levou três broncas do médico. A mãe deu logo uma bronca no médico, chamou o filho de coitadinho, de problemático, que por causa do pai sofreu muito e sofria de “claustrofobia” e que não sabia o que fazer.
Ao ouvir isso, um morador da Rocinha deu logo a sugestão de “mete logo a porrada nesse moleque”.
Apesar da gargalhada geral a mãe irada deu um sugestão hilária “não dá para passar a gaze (atadura) no braço, com duas ou três voltas em vez de imobilizar o braço e o ombro todos”.
O pai indignado com a atitude do filho cobrava atitude dele e a mãe na base do coitadinho reclamava do pai.
E todos nós ouvindo tudo isso!
O filho de forma descarada, cínica, debochada jogava bem com essa contradição, fazendo cara de doente, saia se arrastando pelos corredores com a metade da cueca aparecendo, sem tomar banho, escovar os dentes ou qualquer interesse por higiene.
Um pai acompanhante de um menor morador de outra favela, muito mais pobre, comentou comigo “minha vida de pobreza não me fez fazer do meu filho alguém sem higiene, ele tem 15 anos, mas vai de cadeira tomar banho quando acorda e antes do jantar.”
Observei que esse “filho com problemas” era esperto, entabulava conversas com outros jovens, digamos, com as mesmas afinidades, ou seja, funk, bebidas, motos e atividades noturnas.
A mãe sempre zelosa, um dia pegou a cama de um paciente que subiu para um exame, tirou lençol, mudou de um lado para outro, batendo e assustando diversos pacientes, pois atendeu ao pedido do filho que “queria uma cama móvel que levantasse a parte das pernas”.
Assim, de vontade em vontade, sutilmente realizada, ele estava “querendo fugir” e ir para os bailes, sair, beber, virar noite, fazer filhos e largar por aí, pois “mulher só serve pra isso”.
Toda a cirurgia é precedida de uma “dieta zero” que ele ignorava, a ponto de obter recursos financeiros do pai para comprar refrigerantes, salgadinhos e outros quitutes. Se o pai questionasse, entrava a mãe em cena, aos berros.
O pai chegava e dormia, tanto quanto ele, inclusive na cama do paciente, sem preocupar com higiene ou contaminação. A irmã chegava e dormia tanto quanto ele e pai também.
Ao se aproximar a data da cirurgia ficava patente o medo dele!
Sai antes dele ser cirurgiado, mas disseram que deu trabalho.