segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Sobre livros,  apego, desapego e amor.


Franklin Mattos

Olho meus livros, hoje em bem menor quantidade do que eu possuía a cerca de 4 anos atrás. Foram doados uns 2 mil e quinhentos livros, talvez uns três mil.  Possuindo uma vasta biblioteca particular de quase 12 mil títulos, fui aos poucos desfazendo. Primeiro a de biologia geral, zoologia, ictiologia em especial, ecologia, pedagogia,  educação ambiental, ciências sociais. 

Nossa como me doía desfazer desses livros que comprei desde o tempo de estudante, comendo sanduíches para poder importar. Depois os que eu comprei diretamente nos locais onde estudei.

Realmente, para desespero de muitos, confesso que li pelo menos 75% desses livros. Um gosto acirrado de leitura que herdei de meu pai. As estantes cheias, arrumadas por categorias. Levei alguns para o Grupo de Defesa Ecológia – GRUDE. Muitos livros emprestados, muitos levados sem autorização. Resolvemos fechar a ONG. Surge a primeira decisão de doar isso tudo. Ali existiam uns 5 mil livros. Mas para quem?

Doei uma vez 800 livros para a Fraternidade Francisco de Assis e um belo dia a biblioteca foi desfeita e os livros vendidos em um bazar da própria instituição. Foi meu primeiro exercício de desapego, e, até hoje, recompro os livros que eu doei.

Todas as decisões de doar refletiam uma simples noção de apego: “meus livros” não podiam ir para qualquer lugar, para qualquer pessoa, tinham história e estórias. Relutei, e muito, mas a falta de espaço não me deixou alternativa.

Pasmo, eu descobri que muitas “bibliotecas públicas não aceitam o acervo, por ordens do prefeito”. Outras por falta de espaço. Ou por não terem profissionais e, como não poderia deixar de ser, em algumas um “conhecido” tinha um projeto social que aceitava livros doados e ”vendia” por R$1,00, o que era balela, pois conhecendo os poucos donos de sebos do Rio de Janeiro foi fácil descobrir que não bem assim.

Doar os livros hoje é bem mais fácil, aliás, me da uma alegria imensa ver esse ou aquele livro circulando por ai, emprestado, numa proposta de “leia e passe adiante”. Os jovens DeMolays e os membros da Juventude Espirita são meus maiores recebedores de livros.
Essa pequena introdução sobre livros me surgiu  depois de vivenciar uma experiência na juventude.

Já dizia Buda que o apego é a origem do sofrimento. E ele tem razão – afinal, a maioria sequer sabe que ele existe; e quando descobre, ainda fica sabendo que ele está em tudo!
Ora, todos nós queremos ser felizes. Cada um tem seu conceito de felicidade, todos fazem enorme quantidade de esforço para serem felizes. Surge então uma grande dúvida, entre SER e TER felicidade, aliás um grande dilema da sociedade é entre o “ser” e o “ter”.

Ser feliz ou ter felicidade, um dilema tão constante em qualquer coisa, na base do ser isso ou ter isso, geram infelicidade.  Se não fosse assim, as pessoas em sua grande maioria,  não seriam tão infelizes.

Elas não apenas elas são extremamente infelizes, como elas também fazem as pessoas ao seu redor infelizes também. Muitas pessoas têm uma grande quantidade de dor em suas vidas, que elas tentam aliviar da maneira que puderem.

Estamos sempre apegados a nossos corpos que estão ficando velhos, ou aos nossos bens, a nossa imagem pessoal, ou ainda como os outros me enxergam, será que serei ou sou aceito aqui. Como se não bastasse, tem-se ainda a noção de propriedade: isso me pertence, comprei isso, tenho isso ou aquilo, o meu é de última geração e assim caminha a humanidade.

Ora satisfação é muito importante, motivadora, mas numa sociedade de consumo, nossas relações de afetividade são também levadas a superficialidade do apego. Surge então o sofrimento, como doença corrosiva da alma.

O Buda ensinou que a razão essencial para essa doença dentro de nós é o nosso apego, nossa mente cheia de desejos que são baseados em nossa ignorância essencial. Ignorância do que?

Basicamente, a ignorância de compreender a forma como as coisas realmente são. Portanto, estamos sempre agarrando algo externo. Nós não percebemos nossa interconexão interior, e nos identificamos sempre com esse sentimento do eu e do outro.

Agora, assim como temos a ideia do eu e do outro, temos, portanto, a ideia de querer adquirir o que é atraente e afastar o que queremos evitar. Então este sentimento de vazio interior tem de ser preenchido, e cedemos ao apego, surgindo a dor.

Numa relação afetiva e amorosa geralmente se deseja o carinho, a atenção, a dedicação, a doação para minha satisfação pessoal. Isso é apego, não amor. Quando uma pessoa não recebe ou tem o que aspira surge uma desilusão. Mágoas, dores e ciúmes. Assim a DOR surge e aumenta, ou seja, sofrimento constante. No amor eu desejaria que você fosse feliz, sendo como é, ao meu lado, fazendo o que é de seu agrado e sua natureza.

Mas infelizmente, é claro, só pensamos em nossa desilusão, que o nosso apego às coisas e às pessoas, que confundíamos como amor,  que nos traria a felicidade, gerou sofrimento.
Fazemos isso o tempo todo. Estamos apegados às nossas posses, estamos apegados às pessoas que amamos, estamos apegados à nossa posição no mundo, e à nossa carreira e ao que alcançamos. Pensamos que segurando essas coisas e essas pessoas firmemente teremos segurança, e que a segurança nos dará felicidade. Essa é a nossa desilusão fundamental, pois é o próprio apego que nos torna inseguros, e a insegurança que nos dá essa sensação de constante mal-estar.

Não me faz assim, não me dá isso, não corresponde ao que eu faço por você, eu quero dessa forma e desse jeito. . . Ninguém nos prende com correntes a esta roda. Nós nos agarramos a isso, nós é que seguramos com todas as nossas forças. O caminho para sair da roda é apenas deixar ir.

Essa apreensão, essa mente apegada é a causa do nosso sofrimento, mas estamos muito enganados, porque pensamos que a nossa ganância e nossos desejos e os nossos apegos apontam para as fontes de felicidade.

Por mais que neguemos, nós realmente acreditamos que de alguma forma ou de outra, se todos os nossos desejos forem realizados, teremos uma grande felicidade. Mas o fato é que nossos desejos nunca podem ser todos realizados. Desejos são infinitos.

A prática mostra, infelizmente, que as pessoas estão dispostas a tudo, menos a abrir mão de sua própria dor! Estão tão identificadas com seus papéis de vítimas do mundo que a simples possibilidade de uma mudança parece assustadora… Quem pode dar fim a este ciclo? Apenas você.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

018_Enfermaria 204_Cutuvelada sengundo Murphy

Depois da cena de Mister M, as probabilidades da poderosa e inexorável Lei Murphy se manifestar era de 1000 em 1, isso mesmo, mil chances de se manifestar contra uma de não acontecer.


Percebo Murphy e Merda tem as mesmas iniciais.


Mindinho, foi o apelido dado ao motorista de 132 quilos bem pesados e socados.


Gozador, brincalhão, sempre de bom humor.


Vamos dizer que bebeu um pouco mais, saiu de casa para "ir ali no Zezinho, 100 metros, quase na esquina"! 


E a esquina ficou mais longe, só de sacanagem. Imaginem que a  rua esticou quase 12 esquinas, o poste saltou na frente do carro, só de sacanagem, "parecia um bailarino dançando lambada" ele nos dizia. E o muro. O muro fez um zigue-zague e pulou na frente dele "acho que ele se assustou com o poste".


Bem, braço e ombro lesionados com gravidade, o pé ficou preso nas ferragens, quase foi amputado.


Assim, de pé e braço imobilizados, depois de toda a quela merda asquerosa, fétida e espalhada, escorrida, lavada e lembrada, com chão molhado mindinho teve vontade de ir ao banheiro.


- Sentaí, porra!!!


- Mano não dá, ta foda, vou molhar o lençol e a Osaminha - outro dos apelidos da nazistóide da enfermeira - não ganha pra limpar isso!


Silêncio total. Essa triste verdade nos deixava preocupados, Ainda pouco merda no chão. Agora xixi no lençol. Não era uma boa combinação.


Mister M só resmungava!


Mindinho pede muleta, pede para acender a luz. Levanta.


- Caralho. Vai dar merda isso. 


Gritam pega o "consolo"!


Entre milhões de risadas, as duas da manhã, seguidas de reclamações das outras enfermarias, tivemos um minuto de cultura.


- É "comadre" aquele pote com buraco para colocar o pau, é comadre, consolo é para... longa explicação desnecessária aqui.


Levando-se em conta que ninguém usava aquilo, além de que aquela sugestiva peça estava lá jogada no banheiro, quem se atreveria a usar?


- Bom, vai lá, mas vai com cuidado, olha esse chão molhado.


Lei de Murphy.


Mindinho levanta pulando igual saci, perde o equilíbrio.


Desespero total. Gritos, tentativas de ajuda.


Mas Mindinho era safo, esperto, muito ágil, claro que não muito, limitado pelo peso, gesso na perna e ombros.


Enquanto caia, rapidamente se atira para apoiar-se na cama ao lado, que agora era de frente.


Um grito indescritível corta o ar.


Era o cotovelo acertando o saco do Zé.


Lei de Murphy.


- Quem vai lá massagear?


- Porra tu pesa pra caralho! Não consigo te levantar.



- Vai ter que fazer "boca a boca" , disse o mesmo que pediu o "Consolo"


- Não, é boca a pau ou chupada mesmo!


Finalmente nossa enfermeira zelosa e nazista chegou. O socorro chegava. Nada. Foi só esporro, um pedido e uma ameaça:


- São quase tres horas da manhã e essa bangunça. Por favor meu quarto de descanso é aqui do lado e eu nem consigo dormir. Silêncio. se não vocês vão ver.


Virou-se, apagou a luz e sumiu, com passos rápidos.


Com medo de que ela voltasse para nos torturar, decidimos dormir.


Uma risada aqui, outra ali.


Passara-se mais uma noite .


E amanhã?





quinta-feira, 21 de julho de 2011

017_Enfermaria 204_ Santos Intestinos

Miste M.
M de merda mesmo.

Fratura séria, dois braços, queda de escada. Caiu quando fazia uma obra, na verdade um telhado. Os equipamentos de segurança, bem ele nem sabia direito o que era isso. Desde pequeno, junto com pai, nordestino macho, de Caruaru. Estava acostumado a vida dura, sofrida.

Chegaram ao Rio no início dos anos 80, ele já adolescente.

Bom, para variar o mesmo de sempre: aguardamos uma vaga na cirurgia, sempre ficamos 24 horas em jejum, sem uma gota de água, aí um bêbado dirigindo bate em alta velocidade e toma a nossa frente.

Cena hilária.

Mister M estava a quatro dias na 204. Fez cirurgia, tipo umas 6 horas. Saiu, gemeu, gritou, xingou, reclamou, pediu ajuda, lá estávamos nós, os de sempre.

Com seus dois braços imobilizados, dormir era um problema, comer, tomar banho e ir ao banheiro para necessidades mais básicas do ser humano.

Urinar já era um suplício.

A sacanagem corria solta.

- Não vai quer que eu vá aí sacudir?

- A tira as calças e sai pelado.

- Segura até a hora do banho!

Mas um dia não deu!

A saudável comida local, depois de 24 horas de jejum, come aqui, pega o que sobrou ali, só podia dar nessa situação

Um friozinho na barriga, uma dorzinha aqui, um borbulhar intestinal acolá, flatulências generalizadas, cantantes, uivantes, pedintes, assoviadoras, retumbantes ou como rufar dos tambores em cenas de fuzilamento em filmes americanos.

Não deu tempo.

A fétida prova contundente da humilhante fragilidade da dignidade humana escorria entre as pernas. Uma acastanhada substância descia lentamente, entre gritos, vômitos, risadas e janelas fechadas.

A Enfermeira Nazista já veio avisando que não entraria naquele lugar,, que não ganhava para trabalhar assim,
que não ia cuidar dele. Se alguém quisesse que limpasse e como Miss M, sumiu por quatro longos dias, em plantões de 12 X 48 horas.

Bom, Mister M ali, querendo sumir, caminhava de um lado ao outro no banheiro escuro, a cabeça e os dois braços imobilizados, quando para cima, lembravam o triste e solitário cactus do sertão nordestino.

Finalmente um funcionário "tercerizado" na limpeza lavou e perfumou o ambiente.

Não ficou lá aquelas coisas, mas entre risos e peidos, dormimos todos.

Assim foi a noite e o dia seguinte.

Dois dias depois Mister M recebeu alta.

No dia seguinte estava lá trazendo bombons escondidos!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

016_Enfermaria 204_ A Mãe Possessiva

O filhinho da mãe tinha 24 anos. Acidente de moto. A mãe soube por amigos, seguiu para rua, ficou ao lado do filho até a ambulância chegar.

Creio que não existe uma mãe que não fizesse isso, zelar pela integridade e saúde de seus filhos, protegê-los, reduzir de algum modo seus sofrimentos.

Ela conseguiu acompanhar o filho até enfermaria. Chegou justificando sua presença com um argumento infalível:

- Com ele doente e engessado quem vai dar a comida para ele?

Dei uma discreta olhada no filhinho e percebi que o gesso estava na perna esquerda, portanto, ou eu estava diante de um fenômeno humano que utiliza os talheres com pés ou ele tinha alguma incapacidade motora.

Nenhuma coisa nem outra!

Todos nós nos olhamos e a presença de uma mãe numa enfermaria masculina obrigava-nos a moderar nossa linguagem coloquial, pois palavrão nem pensar. Mas a mãezinha bem que merecia

O almoço era dado na boquinha, de colher, pois ele estava nervoso e agitado e o garfo podia ferir a boca ou machucar a língua.

Ervas e temperos eram separados, colocados ao lado e a comida transferida para o prato dele, trazido de casa, junto com a xícara e talheres.

- Ele só come nesse prato e só toma café nessa xícara!

Quem pode entender a cabeça de uma mãe tão zelosa.

O Banho era uma cena ainda mais engraçada.

Um chuveiro simples comprado pelos pacientes um mês antes de minha chegada. Que sorte eu tive. Assento nos vasos sanitários idem. Um luxo de enfermaria. Tinha até uma cortina fechando o box, para nos dar certa privacidade, mas o banho era frio.

Ajudávamos uns aos outros, cobrindo com plástico os membros imobilizados, dando dica de onde conseguir um saco de lixo ou equivalente, fechávamos com fita adesiva ou amarrávamos, mas cada um se virava sozinho.

Mas a mãezinha dava banho no filhinho!

Chegou a pensar em trazer um fogareiro para esquentar a água, pois ele não tomava banho frio desde pequeno.

Uma imensa vaia deve ter dado certo estímulo para ele decidir tomar banho frio, mesmo gemendo como um cabrito e nunca demorando mais de 2 minutos, cronometrados.

Sem muito que fazer, qualquer coisa servia para os pacientes internados aliviarem a dor e a ansiedade: inventávamos diversões.

Como bons brasileiros, fizemos uma bolsa de apostas com as frutas e iogurtes do café. Quem acertasse o tempo de duração do banho do filhinho da mãe, levava tudo. Na prática dividíamos sempre de novo entre nós mesmos.

O banho mais rápido durou 43 segundos!

Fiquei lembrando da minha mãe, hoje com quase 80 anos, que ficava preocupada a cada viagem para a Amazônia, pedindo para eu tomar cuidado e me secar bem depois de mergulhar, o que era impossível, pois eu passava mais tempo dentro d’água que em terra firme.

Estava rindo sozinho, pois eu sou zoólogo, ictiologista e como os peixes só sobrevivem em água, isso era um pouco impossível.

Eu sou filho de um oficial da marinha, meu pai nadava muito, me ensinou e aprendi a adorar água, banhos longos, rios, mar, cachoeiras!

Eu me vi recém-formado, morando em um barco em Manaus, anistiado, recomeçando a vida ao lado de minha amada e ruiva sabra, enfrentando naufrágios, tempestades tropicais, quedas e outros acidentes, que eu evitava contar em casa, quando vinha ao Rio de Janeiro.

Estava assim absorto em minhas divagações quando o filhinho no banheiro chamou pela mãe com urgência:

- Mãe, depressa, rápido, me ajuda, vem correndo!

Alerta geral na enfermaria: caiu, machucou-se, algum problema sério?

Mas, para agravar a situação, a mãe tinha ido até a cantina!

Solidariedade entre doentes na enfermaria 204 era algo levado muito sério por todos. Alguém próximo entrou com toda a disposição de ajudar um paciente com dificuldades ou até mesmo caído, nós outros começamos um deslocamento em bloco para auxiliar o interno que precisava de socorro.

Nada disso. Foi uma surpresa geral.

Pouparei vocês de detalhes.

O filhinho estava de pernas abertas, uma delas engessada, com gesso fendido verticalmente para a cirurgia no dia seguinte, perguntava pela mãe, com uma expressão assustadora.

Explicando melhor:


Como ele só fazia suas necessidades no banheiro do segundo andar da sua casa, ali, na enfermaria 204, seria impossível e atendendo uma sugestão de sua mãezinha, com muito esforço, fez suas necessidades de pé.

Uma cena indescritível: ele errou o cálculo e a terrível lei da gravidade, combinada com a altura e peso do filhinho, que se conteve por dois dias, com alimentação apropriada para aliviar a prisão de ventre, se manifestava de forma derradeira e cruel.

Uma imensa quantidade de bolo fecal semi-pastoso descendo sinuosamente atingiu exatamente o espaço entre a perna e o gesso, chegando aos dedos.

Notícia ruim se alastra rapidamente e metades dos internos em outras enfermarias se deslocavam rapidamente para verem cena tão inusitada.

Mas, para agravar a situação, a mãe ausente, deixou o celular na bolsa ao lado da cama e, ninguém estava disposto a ir até lá chamá-la.

Foram horas de risadas gerais.

Não teve outro jeito, sozinho, com a mãe longe, teve que tomar banho sozinho, frio e demorado, sendo sacaneado por muitos:

- Lava essa bunda de direito!

- Quer cremezinho?

- Vê se a mão não ficou com cheiro?

- As unhas tão limpas?

O banho durou onze minutos, um recorde.

Tira o gesso, pede para colocar outro, explica ao médico.

Tudo sozinho!

A mãe retorna uns 30 minutos depois de toda a situação resolvida pelo próprio filho e assustada dá sua colaboração final:

- Fica deitadinho de bruços que eu vou comprar hipogloss e passo com carinho!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

015_Enfermaria 204_Em nome de Jesus

Chega outro acidentado, com 24 anos, mais uma vitima de futebol. 
Campo sintético, foi dar um carrinho, o pé travou para trás, deslizando por alguns metros. Um cara ainda caiu por cima do atleta. Depois de 12 horas no "politrauma", vagou leito, não deu outra: cirurgia.

Chega rindo, zoando todos, dos mais velhos até os mais novos.

Assis comenta:

- O medo é foda. 


Soltei uma alta risada e bem alto. E todo mundo já sabia do que se tratava. 


Antonio perguntou se o atleta estava com o mesmo problema  do paciente do leito 9 , que havia morrido horas antes.


O atleta deu um salto da cama, olhos arregalados, apavorado:


- Porra, estou numa cama de um cara que morreu ontem?


- Não, ele morreu hoje de manhã, disse Assis!


A cara de "sou fodão" do atleta começou a mudar. Cada um de nós contava das dores, e aqueles que estavam se recuperavam das dores do trauma pós-operatório exageravam na narrativa.


Não me lembro quem foi lá, olhou a perna enfaixada e com cara de entendido, para apavorar ainda mais disse:

- Igualzinho, mesmo pé, mesmo lado e quase da mesma idade, espero que sobreviva.

A pilha dos internos aumentando:

- Meu irmão, isso doi muito!
- São quase 5 horas de cirurgia.
- Tu nem imagina quando a anestesia termina.

Com toda a coragem do mundo, o super atleta começou a chorar e rapidamente pegou o celular e, pronto, ligou pra mamãe.

No horário da visita vem ela, a super mãe. 

- Em nome de Jesus...nada disso vai acontecer!

Não tinha uma situação realizada ou por realizar que começasse com essa frase. Qualquer ação, por mais desonesta que fosse, começava ou terminava em nome Dele.

E assim, para desespero dos evangélicos, aqueles que são devotos de verdade e por fé, ela a "mãe do atleta", fazia tudo de errado. Cada gesto era uma chuva de protestos, uma sessão de consultas ao Livro Sagrado, uma conferência de devotos em defesa da Verdade!

E ela se sentia cada vez mais protegida.


Seu primeiro ato foi descer e roubar uma roupa de acompanhante de idosos e outra de crianças.

- Em nome de Jesus eu consegui e vou ficar com você aqui! Uma velha largou o colete na cantina. Eu passei na hora. Foi Jesus! Disfarcei e peguei a colete e entrei pela emergência. Foi Jesus que me protegeu e o guarda nem me pediu crachá.

Um evangélico, X, saiu do banho, de um lado com barba por fazer e do outro cheio de creme de barbear, saiu aos berros. 


Com ele se equilibrando em uma perna e em uma das bengalas e apontando a outra para ela, aos berros recitava versículos bíblicos.


No meio dessa cena hilária eu me lembrava John Charles Carter, mais conhecido como Charlton Heston, como Moisés e seu cajado mágico, enfrentando o Faraó.


Mas a mãe do atleta foi sutil como hipopótamo baleado dançando balé clássico em pista de patins no gelo:

- Jesus está do lado dos espertos!

Assim, durante 3 dias, Jesus ajudava essa mãe devotada em todas as coisas mais escabrosas.

Roubando cobertor de outros pacientes em outras enfermarias, escondendo comida de pacientes ou de acompanhantes, pegando frutas, sucos e demais alimentos de dietas especiais fossem de idosos ou crianças.


E, para comprovar suas teorias, ficava gritando histericamente de todas as formas, fingindo desespero, para o filho ser operado, inventava situações para médicos e enfermeiros.

A melhor surpresa para todos nós foi no dia que ela trouxe a "ex-mãe de santo" dela,  que era enfermeira numa outro setor.


E como Deus escreve certo em linhas tortas:

- Foi Jesus que me fez te encontrar, disse a mão do atleta para a mãe dos santos! 


E beijava de forma muito reverente a mão da babalaorixá.  E em nome de Jesus ela saudava todos os Orixás e guias da ex-mãe de santo. E explicava solenemente:

- Mesmo em outra fé - agora sou Cristã-  eu ainda tenho respeito, pois fui criada nos segredos e fuxicos do santo. Olha só de falar fico arrepiada.

Bom meus amigos evangélicos, na verdade 3, estavam indignados e um deles, disse o seguinte:

- Sou operário da construção, fiz um esforço para aprender a ler só para lera bíblia, meus filhos estudam e hoje faço pequenas obras na região (Gávea e São Conrado). Nunca levei um prego e ensino isso a meus funcionários e filhos. Como ela pode fazer isso em nome Dele!

Bom, eu concordava com ele em tudo, mas para evitar uma guerra santa, me me lembrei e falei:

- Devemos perdoar 70 vezes 7 vezes!

Para surpresa geral eu, não evangélico, espiritualista meio esquisito, citava a Biblía.

Antonio e Assis riram e alguém comentou:

- É professor, só na 204 mesmo, né! E além do mais os doentes é que precisam de médicos, disse Jesus!

Fui convidado a participar do culto daquela noite e que eu escolhesse um tema da biblía para ler e comentar.

Sem abrir a biblia falei que queria comentar esse trecho "Todos conhecerão que sois meus discípulos, de vos amardes uns aos outros como eu vos amei"

Expliquei que ali nós fazíamos isso ao ajudarmos pessoas que nem conhecíamos direito e isso é ser cristão, independente da religião que professamos.

No dia que vim embora, ganhei de presente uma velha bíblia surrada.

Na semana seguinte levei uma novinha, de capa preta e de ziper. Foi o jeito de retribuir aqueles momentos. 
E a grande alma disse entre lágrimas:

- Deve ter sido cara essa! Vou deixar na Igreja. Pode fazer umas escritas para eu mostrar.

Lá fui olhar e copiar de João e escrevi orgulhoso:

(João 15:12) - O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. Agradeço por tudo que você me ensinou nessa enfermaria. Franklin

E agora com todo respeito e dignidade, foi "Em nome de Jesus" que eu conheci essas pessoas!

014_Enfermaria 204 _Mexe com o pé, porra!

Bom, era meu primeiro dia, estava ainda me familiarizando com as coisas, com as rotinas, com as pessoas. Era tudo tão novo e, ainda era um hospital público.

No leito a minha direita estava um paciente que havia sido operado no dia anterior. Foi no pé, não sei explicar direito, pois ele não falava, só gemia.

Era um homem de 25 anos, atlético, acidentou-se num jogo de futebol.

O médico passava sempre que podia e perguntava:

- Tá mexendo com o pé, como ensinei?

Ele respondia sempre afirmativamente e eu, em 4 horas ali deitado, nunca tinha visto esse exercício e, calculei, que deveriam ser movimentos sutis e delicados, daí serem imperceptíveis.

Antes da troca do plantão o médio veio novamente e perguntou:

- Tá mexendo os pés?

- Sim, de hora em hora! Disse rindo, meio nervoso!

- Então mexe, agora, que eu quero ver?

O cidadão mexia levemente o dedão do pé.

O médico balançou a cabeça negativamente e falou em voz bem alta e tom sério:

- Eu disse mexe com o pé, porra! Não disse mexe com o dedão do pé, porra!.

- Mas eu só posso fazer isso, não dá pra fazer mais.

- Sei, só isso, né... Só assim? Está bem, vou ensinar, logo, pois mexer com pé e fazer assim!

De uma vez só, segurou a perna com uma das mãos pressionando-a na cama e com a outra pegou no pé e fez um movimento rápido de dois tempos, para cima e para baixo, como se fosse um movimento de bailarina.

Um uivo cortou a sala, pacientes e enfermeiros curiosos vieram olhar assustados.

- Se amanhã eu chegar aqui e você não estiver mexendo os pés, eu vou fazer os exercícios.

Durante o fim da tarde e por toda a noite só ouvia os gemidos de "P" e imaginei que aquele movimento brusco tinha deixado o coitado cheio de dores.

São seis horas da manhã.

O médico empurra a porta e acende a luz.

"P" se levanta da cama, coloca as pernas por alto e mexe os pés como se fosse um bailarino exercitando-se antes da apresentação:

- Aí, doutor, nem chega perto, tá vendo estou mexendo com o pé todo, pelo amnor de Deus, nem precisa mais mexer.

O pé não parava e mexia de todas as formas, em vario movimentos e rapidamente!

O médico disse:

- Vou te dar alta hoje.

Na verdade o medo, a dor e a maneira de pensarmos sobre nossos problemas cirúrgicos, são nossos inimigos na recuperação.

O medo do médico mexer novamente em seu pé, fez com "P" perdesse o medo de movimentar o próprio pé.

Essa lição me foi valiosíssima na minha recuperação.


013_Enfermaria 204 _ Mamãe me tira daqui

São 22 horas. Todos dormindo.

Chegam as equipes de enfermagem acendendo as luzes, mexem no leito 1, que estava vazio. Saem apressadamente.

O barulho das rodas da maca no corredor indicam que vem coisa feia por ai.

O cidadão com pernas, braços com grampos externos, diversos pontos no rosto, outro ombro todo enfaixado e a mão idem.

São 2 horas da manhã. Era dia de plantão da enfermeira nazista, que achava que doente só sente dor.

Passa o efeito da anestesia. O paciente do leito 1 começa o show particular, são 40 minutos gemendo e gritando:

- Eu morri, socorro, eu não quero morrer!
- Mamãe me tira daqui! Eu não bebo mais!
- Fulana volta pra mim!
- Socorro estão me torturando!
- Acende a luz que tem bicho aqui!
- Mamãe me tira da cadeia, eu não faço mais isso!
- Mamãe me tira desta cadeia se não ele vão me violentar!

Essa última frase exigiu uma rápida ação, pois ele poderia começar a revelar os segredos da sua traumática estadia na cadeia.

Enquanto estávamos nos levantando e acendendo a luz ele começou a se mexer violentamente tentando se soltar das ataduras.

- Professor deixa que ele vai contar como foi a primeira vez...

Risadas gerais.

Assis pegou as muletas foi até a enfermaria, eu fui até o leito 1 pois eu era o único que podia me mexer e ainda tinha livre a mão.

Quando me aproximei ele se encolheu todo no leito e começou a berrar que era homem, que não podia ser violentado e coisa e tal.

Imediatamente Antonio e Augusto soltaram a frase derradeira que gerou risada de todos:

- É professor, esse aí já é casado...
- Se precisar de anel, minha esposa deixou o cobertor embrulhado e tem barbante aqui!

Como o diálogo não dava em nada, tratei logo de me fazer ouvir e gritei:

- Qual seu nome? Como você chegou no Hospital?

Acho que nosso amigo ficou mais calmo quando ouviu "hospital".

- Calma, aqui é o Miguel Couto, no Rio, não é cadeia - expliquei - Você está todo quebrado, cheio de gesso, fez cirurgia, deve ter sido acidente, fica calmo. Já ligou para os parentes.

A solidariedade da enfermaria se fez imediata, 6 celulares apareceram.

Assis chegava com um enfermeiro, pois a nazistinha se recusava a atender o paciente, afinal de contas paciente só sente dor e reclama, esquecendo que ela também tem problemas.

A santa e cancerígena dipirona foi ministrada...

O enfermeiro explicou:

- A namorada ou mulher largou o cara, ele saiu de bicicleta, bebeu todas e subiu a ponte Rio-Niterói na contramão, querendo vir ao Rio.

A piadinha final:

- Corno, bêbado e com anel de barbante no dedo....

Na manhã seguinte, no café, ele estava mais calmo e pediu ajuda para ir ao banheiro. Levantei mexi nas manivelas da cama, dei o ombro, ele pediu um espelho.

- Vai doer ainda por um bom tempo, mas a dor vai passar em algumas horas, disse eu!

A resposta veio rápida e dura:

- Meu senhor eu sou homem macho, sei sentir dor.

Respirei e pronto, deixa pra lá

- Deve ser por isso que ele pedia ajuda a mãezinha dele ontem de noite, lascou Augusto.

- Nada disso, deve ter sido a cadeia que ensinou ele a aguentar dor, emendou Antonio.

Risos gerais.

Apenas expliquei que ali todo mundo sacaneava um ao outro para que nossas dores passassem mais rápido, que ele nem procurasse entender aquilo pois nós estávamos ali a mais tempo que ele e nossas relações são diferentes.

Ficou mais uma noite e foi embora no dia seguinte.

Mas durante a sua estadia ajudou outros pacientes, agradeceu pelo telefonema, pelo apoio e fez questão de falar individualmente com cada um de nós.