quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

015_Enfermaria 204_Em nome de Jesus

Chega outro acidentado, com 24 anos, mais uma vitima de futebol. 
Campo sintético, foi dar um carrinho, o pé travou para trás, deslizando por alguns metros. Um cara ainda caiu por cima do atleta. Depois de 12 horas no "politrauma", vagou leito, não deu outra: cirurgia.

Chega rindo, zoando todos, dos mais velhos até os mais novos.

Assis comenta:

- O medo é foda. 


Soltei uma alta risada e bem alto. E todo mundo já sabia do que se tratava. 


Antonio perguntou se o atleta estava com o mesmo problema  do paciente do leito 9 , que havia morrido horas antes.


O atleta deu um salto da cama, olhos arregalados, apavorado:


- Porra, estou numa cama de um cara que morreu ontem?


- Não, ele morreu hoje de manhã, disse Assis!


A cara de "sou fodão" do atleta começou a mudar. Cada um de nós contava das dores, e aqueles que estavam se recuperavam das dores do trauma pós-operatório exageravam na narrativa.


Não me lembro quem foi lá, olhou a perna enfaixada e com cara de entendido, para apavorar ainda mais disse:

- Igualzinho, mesmo pé, mesmo lado e quase da mesma idade, espero que sobreviva.

A pilha dos internos aumentando:

- Meu irmão, isso doi muito!
- São quase 5 horas de cirurgia.
- Tu nem imagina quando a anestesia termina.

Com toda a coragem do mundo, o super atleta começou a chorar e rapidamente pegou o celular e, pronto, ligou pra mamãe.

No horário da visita vem ela, a super mãe. 

- Em nome de Jesus...nada disso vai acontecer!

Não tinha uma situação realizada ou por realizar que começasse com essa frase. Qualquer ação, por mais desonesta que fosse, começava ou terminava em nome Dele.

E assim, para desespero dos evangélicos, aqueles que são devotos de verdade e por fé, ela a "mãe do atleta", fazia tudo de errado. Cada gesto era uma chuva de protestos, uma sessão de consultas ao Livro Sagrado, uma conferência de devotos em defesa da Verdade!

E ela se sentia cada vez mais protegida.


Seu primeiro ato foi descer e roubar uma roupa de acompanhante de idosos e outra de crianças.

- Em nome de Jesus eu consegui e vou ficar com você aqui! Uma velha largou o colete na cantina. Eu passei na hora. Foi Jesus! Disfarcei e peguei a colete e entrei pela emergência. Foi Jesus que me protegeu e o guarda nem me pediu crachá.

Um evangélico, X, saiu do banho, de um lado com barba por fazer e do outro cheio de creme de barbear, saiu aos berros. 


Com ele se equilibrando em uma perna e em uma das bengalas e apontando a outra para ela, aos berros recitava versículos bíblicos.


No meio dessa cena hilária eu me lembrava John Charles Carter, mais conhecido como Charlton Heston, como Moisés e seu cajado mágico, enfrentando o Faraó.


Mas a mãe do atleta foi sutil como hipopótamo baleado dançando balé clássico em pista de patins no gelo:

- Jesus está do lado dos espertos!

Assim, durante 3 dias, Jesus ajudava essa mãe devotada em todas as coisas mais escabrosas.

Roubando cobertor de outros pacientes em outras enfermarias, escondendo comida de pacientes ou de acompanhantes, pegando frutas, sucos e demais alimentos de dietas especiais fossem de idosos ou crianças.


E, para comprovar suas teorias, ficava gritando histericamente de todas as formas, fingindo desespero, para o filho ser operado, inventava situações para médicos e enfermeiros.

A melhor surpresa para todos nós foi no dia que ela trouxe a "ex-mãe de santo" dela,  que era enfermeira numa outro setor.


E como Deus escreve certo em linhas tortas:

- Foi Jesus que me fez te encontrar, disse a mão do atleta para a mãe dos santos! 


E beijava de forma muito reverente a mão da babalaorixá.  E em nome de Jesus ela saudava todos os Orixás e guias da ex-mãe de santo. E explicava solenemente:

- Mesmo em outra fé - agora sou Cristã-  eu ainda tenho respeito, pois fui criada nos segredos e fuxicos do santo. Olha só de falar fico arrepiada.

Bom meus amigos evangélicos, na verdade 3, estavam indignados e um deles, disse o seguinte:

- Sou operário da construção, fiz um esforço para aprender a ler só para lera bíblia, meus filhos estudam e hoje faço pequenas obras na região (Gávea e São Conrado). Nunca levei um prego e ensino isso a meus funcionários e filhos. Como ela pode fazer isso em nome Dele!

Bom, eu concordava com ele em tudo, mas para evitar uma guerra santa, me me lembrei e falei:

- Devemos perdoar 70 vezes 7 vezes!

Para surpresa geral eu, não evangélico, espiritualista meio esquisito, citava a Biblía.

Antonio e Assis riram e alguém comentou:

- É professor, só na 204 mesmo, né! E além do mais os doentes é que precisam de médicos, disse Jesus!

Fui convidado a participar do culto daquela noite e que eu escolhesse um tema da biblía para ler e comentar.

Sem abrir a biblia falei que queria comentar esse trecho "Todos conhecerão que sois meus discípulos, de vos amardes uns aos outros como eu vos amei"

Expliquei que ali nós fazíamos isso ao ajudarmos pessoas que nem conhecíamos direito e isso é ser cristão, independente da religião que professamos.

No dia que vim embora, ganhei de presente uma velha bíblia surrada.

Na semana seguinte levei uma novinha, de capa preta e de ziper. Foi o jeito de retribuir aqueles momentos. 
E a grande alma disse entre lágrimas:

- Deve ter sido cara essa! Vou deixar na Igreja. Pode fazer umas escritas para eu mostrar.

Lá fui olhar e copiar de João e escrevi orgulhoso:

(João 15:12) - O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. Agradeço por tudo que você me ensinou nessa enfermaria. Franklin

E agora com todo respeito e dignidade, foi "Em nome de Jesus" que eu conheci essas pessoas!

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