quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

016_Enfermaria 204_ A Mãe Possessiva

O filhinho da mãe tinha 24 anos. Acidente de moto. A mãe soube por amigos, seguiu para rua, ficou ao lado do filho até a ambulância chegar.

Creio que não existe uma mãe que não fizesse isso, zelar pela integridade e saúde de seus filhos, protegê-los, reduzir de algum modo seus sofrimentos.

Ela conseguiu acompanhar o filho até enfermaria. Chegou justificando sua presença com um argumento infalível:

- Com ele doente e engessado quem vai dar a comida para ele?

Dei uma discreta olhada no filhinho e percebi que o gesso estava na perna esquerda, portanto, ou eu estava diante de um fenômeno humano que utiliza os talheres com pés ou ele tinha alguma incapacidade motora.

Nenhuma coisa nem outra!

Todos nós nos olhamos e a presença de uma mãe numa enfermaria masculina obrigava-nos a moderar nossa linguagem coloquial, pois palavrão nem pensar. Mas a mãezinha bem que merecia

O almoço era dado na boquinha, de colher, pois ele estava nervoso e agitado e o garfo podia ferir a boca ou machucar a língua.

Ervas e temperos eram separados, colocados ao lado e a comida transferida para o prato dele, trazido de casa, junto com a xícara e talheres.

- Ele só come nesse prato e só toma café nessa xícara!

Quem pode entender a cabeça de uma mãe tão zelosa.

O Banho era uma cena ainda mais engraçada.

Um chuveiro simples comprado pelos pacientes um mês antes de minha chegada. Que sorte eu tive. Assento nos vasos sanitários idem. Um luxo de enfermaria. Tinha até uma cortina fechando o box, para nos dar certa privacidade, mas o banho era frio.

Ajudávamos uns aos outros, cobrindo com plástico os membros imobilizados, dando dica de onde conseguir um saco de lixo ou equivalente, fechávamos com fita adesiva ou amarrávamos, mas cada um se virava sozinho.

Mas a mãezinha dava banho no filhinho!

Chegou a pensar em trazer um fogareiro para esquentar a água, pois ele não tomava banho frio desde pequeno.

Uma imensa vaia deve ter dado certo estímulo para ele decidir tomar banho frio, mesmo gemendo como um cabrito e nunca demorando mais de 2 minutos, cronometrados.

Sem muito que fazer, qualquer coisa servia para os pacientes internados aliviarem a dor e a ansiedade: inventávamos diversões.

Como bons brasileiros, fizemos uma bolsa de apostas com as frutas e iogurtes do café. Quem acertasse o tempo de duração do banho do filhinho da mãe, levava tudo. Na prática dividíamos sempre de novo entre nós mesmos.

O banho mais rápido durou 43 segundos!

Fiquei lembrando da minha mãe, hoje com quase 80 anos, que ficava preocupada a cada viagem para a Amazônia, pedindo para eu tomar cuidado e me secar bem depois de mergulhar, o que era impossível, pois eu passava mais tempo dentro d’água que em terra firme.

Estava rindo sozinho, pois eu sou zoólogo, ictiologista e como os peixes só sobrevivem em água, isso era um pouco impossível.

Eu sou filho de um oficial da marinha, meu pai nadava muito, me ensinou e aprendi a adorar água, banhos longos, rios, mar, cachoeiras!

Eu me vi recém-formado, morando em um barco em Manaus, anistiado, recomeçando a vida ao lado de minha amada e ruiva sabra, enfrentando naufrágios, tempestades tropicais, quedas e outros acidentes, que eu evitava contar em casa, quando vinha ao Rio de Janeiro.

Estava assim absorto em minhas divagações quando o filhinho no banheiro chamou pela mãe com urgência:

- Mãe, depressa, rápido, me ajuda, vem correndo!

Alerta geral na enfermaria: caiu, machucou-se, algum problema sério?

Mas, para agravar a situação, a mãe tinha ido até a cantina!

Solidariedade entre doentes na enfermaria 204 era algo levado muito sério por todos. Alguém próximo entrou com toda a disposição de ajudar um paciente com dificuldades ou até mesmo caído, nós outros começamos um deslocamento em bloco para auxiliar o interno que precisava de socorro.

Nada disso. Foi uma surpresa geral.

Pouparei vocês de detalhes.

O filhinho estava de pernas abertas, uma delas engessada, com gesso fendido verticalmente para a cirurgia no dia seguinte, perguntava pela mãe, com uma expressão assustadora.

Explicando melhor:


Como ele só fazia suas necessidades no banheiro do segundo andar da sua casa, ali, na enfermaria 204, seria impossível e atendendo uma sugestão de sua mãezinha, com muito esforço, fez suas necessidades de pé.

Uma cena indescritível: ele errou o cálculo e a terrível lei da gravidade, combinada com a altura e peso do filhinho, que se conteve por dois dias, com alimentação apropriada para aliviar a prisão de ventre, se manifestava de forma derradeira e cruel.

Uma imensa quantidade de bolo fecal semi-pastoso descendo sinuosamente atingiu exatamente o espaço entre a perna e o gesso, chegando aos dedos.

Notícia ruim se alastra rapidamente e metades dos internos em outras enfermarias se deslocavam rapidamente para verem cena tão inusitada.

Mas, para agravar a situação, a mãe ausente, deixou o celular na bolsa ao lado da cama e, ninguém estava disposto a ir até lá chamá-la.

Foram horas de risadas gerais.

Não teve outro jeito, sozinho, com a mãe longe, teve que tomar banho sozinho, frio e demorado, sendo sacaneado por muitos:

- Lava essa bunda de direito!

- Quer cremezinho?

- Vê se a mão não ficou com cheiro?

- As unhas tão limpas?

O banho durou onze minutos, um recorde.

Tira o gesso, pede para colocar outro, explica ao médico.

Tudo sozinho!

A mãe retorna uns 30 minutos depois de toda a situação resolvida pelo próprio filho e assustada dá sua colaboração final:

- Fica deitadinho de bruços que eu vou comprar hipogloss e passo com carinho!

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